A professora de português vivia dando nota baixa nas redações que aluna escrevia. O pai, um escritor consagrado, resolve dar uma ajudinha à filha para evitar que ela repita o ano.
Segue
crônica de Carlos Heitor Cony, publicada no longínquo 30 de outubro de 1998 no
caderno Ilustrada da Folha de S. Paulo.
O
PÔR-DO-SOL DA FREIRA
O
Premiado no Brasil e no estrangeiro, coberto de glórias literárias e sociais,
ele chegou à sua casa e encontrou a filha em prantos. Dizia-se desgraçada,
queria se matar. Contou o seu drama: estava ameaçada de levar bomba em
português. Autora das piores redações de todo o ano letivo, a madre-professora
dera a chance: ou fazia uma composição decente que redimisse os erros
acumulados durante o ano, ou ficava sem média para os exames. E ela - que
brilhara em matemática, que ganhara o prêmio de viagem a Mataripe pela melhor
nota em geografia, que era autoridade em Renascença e em Guerras Púnicas -
sentiu o gosto da bomba a caminho.
“Uma
humilhação!”, berrou o pai no meio da sala. Um homem traduzido em copta, em
servo-croata, editado pelo MacMillan, amigo do García Márquez e do Saramago,
patrono de escolas, nome de biblioteca no Recife, ter uma filha ameaçada de
bomba em redação! Uma vergonha! A filha enxugou as lágrimas. Ferido no orgulho,
o pai quebraria o galho. E, para começar, quase quebrou a sopeira que vinha da
cozinha. “Suspendam o jantar! Vou fazer uma redação para minha filha! Quero ver
o que essa freira de...” A filha gritou: “Papai!”. Mas ele estava possesso:
“Quero ver o que essa freira de merda vai dizer da minha composição!”. Quando o
pai atingia o palavrão, é que o negócio estava preto mesmo. E tão preto estava
que todo mundo começou a pisar na ponta dos pés, em respeito à concentração do
chefe da casa que se trancara no gabinete. Fera enjaulada, ele procurou se
acalmar. No fundo da estante mantinha um pequeno bar. Desde que o médico o
proibira de beber, ele levara para o sacrário da casa algumas bebidas, lá
imperava sem dar satisfações a ninguém, principalmente à mulher, que o
controlava com ferocidade.
Foi
lá, escolheu o melhor uísque, que reservava para os grandes momentos, quando
precisava enfrentar formidáveis desafios. Tomou uma talagada generosa e logo
outra para consolidar. Limpou com energia a mesa, varejou papéis velhos, abriu
o computador. Mas reconsiderou. Não, nada com o computador, muito frio e
profissional. Foi nos guardados e apanhou a caneta de estimação, uma velha
Parker rombuda, a mesma com que escrevera seu maior êxito de venda e crítica.
Aquela pena fora elogiada por William Faulkner e por John dos Passos. Só então
descobriu que não sabia sobre o que deveria escrever. Abriu a porta e berrou
para a sala: “Qual é o tema?”.
“Pôr-do-sol,
papai.” Antes de fechar a porta, descobriu que tinha mais um excelente motivo
para esculhambar com a madre. Ora essa, o mundo mudara, o Muro de Berlim caíra,
estávamos às portas do novo milênio, e vinha uma freira anacrônica impor à
juventude dos anos 90 um tema daqueles, de tempos parnasianos e ultrapassados!
Mesmo assim, não teve alternativa. Separou duas laudas do melhor papel de seu
estoque, começou a primeira frase, mas estancou: na parte superior da lauda
estava o seu nome, com o monograma da Academia de Letras a que pertencia.
Procurou pelas gavetas, não encontrou outro tipo de papel, teve de gritar mais
uma vez pela filha, que lhe passou um papel almaço pautado. Havia séculos não
escrevia num troço daqueles. Alisou-o com alguma raiva, mas teve vontade de
cheirá-lo. Sim, cheirava ainda como os papéis almaços de antigamente. Tudo
aquilo lhe pareceu de bom agouro. Tacou um pôr-do-sol caprichadíssimo, pleno de
tintas sangrentas no horizonte, pássaros fatigados que se recolhiam antes que as
trevas chegassem. Esparramou suspiros de lagos plácidos que anoiteciam.
Lembrou-se de todos os pores-do-sol que vira em velhas folhinhas de armazém,
ressuscitou deslumbramentos de sua infância, inventou uma pradaria, depois uma
charneca, ficou em dúvida: não sabia a diferença entre uma pradaria e uma
charneca, na verdade, nem sabia ao certo o que era uma charneca.
Vencendo
com destemor estas e outras dificuldades, em menos de meia hora as 30 linhas
estavam cumpridas. Releu em voz alta para si mesmo, foi severo na revisão,
substituiu um “profundamente” por um “essencialmente”, alterou a regência de um
verbo e deu por limpa e acabada a prova. Chamou a filha: “Copie com sua letra
agora! Vai ser barbada!”.
Os eventos da noite trouxeram esquecimento e paz sobre o assunto. Jantaram, viram um filme no novo canal da TV a cabo, a filha mais velha, recém-casada, apareceu na visita de todas as noites, finalmente foram dormir. O homem acordou ao meio-dia, com outro bode armado na sala de baixo. Sob as cobertas, distinguia o choro da filha e as vozes abafadas que a consolavam. Desceu de pijama mesmo. “O que está havendo nesta casa?”A filha correu para ele, os braços abertos: “Papai, a freira deu bomba no senhor! Quatro!”. E o pai, traduzido em servo-croata, editado pelo MacMillan, amigo do García Márquez e do Saramago, deu um uivo. Rolou pela escada, espumando contra a freira e contra o pôr-do-sol.
Texto extraido do blog do professor Ernani Terra, doutor em Língua Portuguesa pela PUC-SP, transferido por Cleno Vieira.
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